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Let me out Don't tell me everything Start it out Like any other day Must have gave the wrong impression Don't you understand where I belong? Well I'm not the one (Carry me home - The Killers)

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Memórias

“Leve-me para casa
Eu não tenho medo
As estrelas nos meus olhos
Eram luzes cintilantes
Leve-me para casa
Não me deixe desaparecer”
(The Killers – Carry me home)


Sofia procurava por entre os bilhetes uma memória esquecida. Sentia seu estômago revirar a cada nome que encontrava escrito nos papeis. As palavras, harmonicamente desenhadas, evocavam as vozes que tanto a atormentava, mas ela se sentia realizada por ter mantido aquelas lembranças – eram as melhores que podia ter e compensavam por muitas outras que não gostaria de ter. Mas lá estava, um pedaço de papel de caderno, rabiscado por letras ilegíveis, aquele que ela procurava.


“Querida Sofia...” ela não tentou concluir a leitura. Lembrava-se de cada letra, cada palavra, até de cada pontuação errônea que lhe dava nos nervos. Lembrava-se dele. Do seu sorriso maroto, do seu olhar cativante, da sua voz suave e rouca, dele. Não tão distante, teve de se despedir. Abandonar todos os risos que com ele dera, todos os abraços que dele recebera, todas as palavras que um dia já ouvira. O tempo passa, e a mudança é inevitável. Separaram-se para nunca mais se encontrar, mas o sentimento perdurou por todo o tempo. Até agora.


Em suas palavras restou o pedido: não permita que isso acabe. Mantenha a chama viva da tua alma, deixe com que as memórias se imortalizem, lembre-se sempre de mim que, assim, me lembrarei de ti. Sofia levou consigo, em sua alma vermelha de paixão, todas as lembranças, como se fossem sagradas para toda a vida. Mas, conforme o tempo passava, e a distância aumentava, sua alma tornou-se de um tom vermelho vivo para um esverdeado vibrante – a esperança era tê-lo de volta. Pobre Sofia, mal sabia ela que o retorno não aconteceria.


Perdeu suas esperanças, enegreceu sua alma. Já não sabia o propósito de mais nada, mas ainda mantinha, bem guardadas, as cartas a ela endereçadas. De início, lia e relia cada frase, procurava sentir as memórias. Sentava-se próxima a janela, perdia-se ao meio dos montes de papeis. Mas, por cada vez mais que insistia naqueles rabiscos, Sofia já não encontrava o sentido. Naquele dia mesmo, em que se decidira abandonar as lembranças que só a impediam de seguir, o sol brilhou mais forte e o céu, num tom de azul pacífico, tornou-se limpo. Era um grande passo, que ficaria para uma outra história, mas não custa dizê-lo aqui mesmo.


Sofia desprendeu-se do passado, o seu olhar brilhava ainda mais do que antes. Estava livre e sentia-se bem. Aquelas cartas não foram destruídas, mas deixadas de lado. Sorria alegremente ao ver o dia amanhecer. Sorriu ainda mais quando reencontrou o olhar que cintilava ao encontrar o dela. Os olhos castanhos e aconchegantes, o sorriso perfeito e o calor do toque fez com que Sofia se esquecesse daqueles montes de papeis que tivera separado. Mas, embora ela não percebesse, a memória se fazia, naquele outro alguém, eternizada. Aquela era a lembrança que não desvanecia.

Fênix

“Eu quero reconciliar a violência no seu coração

Eu quero reconhecer a sua beleza, não só uma máscara

Eu quero exorcizar os demônios do seu passado

Eu quero satisfazer os desejos secretos do seu coração”

Undisclosed desires - Muse

Dizem que vermelho é a cor da paixão. Eu discordo. Deparei-me com essa cor em diversas situações e em nenhuma delas havia paixão. Vi olhos vermelhos de raiva e o sangue, num tom de vermelho que eu desconhecia, de pessoas com quem me importava escorrer, levando suas vidas neste rio. Às vezes tento fugir da minha realidade, escapar desses falsos vínculos que, para mim, não significam nada.

Os meus dias são sempre os mesmos. Sigo uma rotina e tenho de sempre tomar cuidado com quem contato e, até mesmo, com quem percebe a minha presença no decorrer do dia. Sou uma fugitiva, como já disse, da minha realidade. Mas nem sempre essa sou eu. Meus pais foram mortos há doze anos, quando eu ainda era uma criança. Eu teria sido pega, se os criminosos fossem competentes e se eu não fosse silenciosa. Mas me escondi debaixo da minha cama – que clichê. Como o meu quarto estava ainda arrumado, como se ninguém estivesse ali o dia inteiro, os bastardos não se deram ao trabalho de me procurar por lá. Presenciar uma cena dessas pode mexer com o psicológico de uma criança.

Cresci procurando por vingança. Aprendi a ser rápida e silenciosa, tornei-me uma lutadora daquelas de história em quadrinhos, invencível. Toda noite eu ia num armazém abandonado para golpear alguns sacos de areia, era lá que eu voltava à minha realidade. Quando tudo isso começou, eu buscava fazer aqueles desgraçados pagarem pelo o que tive de passar, ainda mais pelos meus pais que não voltariam. Mas era a minha chance de fazer a coisa certa, de vingança e justiça. Decidi, então, praticar um pouco mais para estar pronta quando eu os encontrasse. Isso acontecia com os pequenos bandidos, alguns ladrõezinhos... Fui pegando o gosto pela coisa e não tardou para eu estar nas manchetes dos jornais. “Garota Misteriosa cuida de nossos cidadãos”, “Salvo mais uma vez pela Garota Misteriosa” e por assim ia.

Apesar de eu ser a ‘salvadora’ da cidade, nem todos concordavam que isso era bom. Aparentemente eu oferecia algum tipo de risco, segundo alguns detetives. Disso eu sei, porque eles não são nada discretos e, com certeza, não falam nada baixo. Eles estavam procurando pela Garota Misteriosa, contatando aquelas pessoas a quem prestei meus serviços e fazendo delas testemunhas para chegar até a mim. A única tática que podia funcionar. Entretanto, eles ignoraram o fato de eu não ser estúpida ao ponto de me identificar. Eu arranjei um figurino, obviamente, para não ser reconhecida. Mas os meus motivos eram diferentes. Não me mascarei para proteger as pessoas com quem me importo, aliás, todas elas estavam mortas, mas para manter o elemento surpresa quando encontrasse os meus alvos.

A minha rotina passou a ser um pouco mais difícil, eu tinha de cuidar dos cidadãos – que agora eram ‘meus’, porque passei a sentir uma obrigação quase que disfuncional de protegê-los – e tinha de me manter fora do radar daqueles detetives, que mais sabiam comer do que realmente investigar. Até que um dia eu tive a sorte de salvar um cara de uma execução. Afugentei os caras maus e fui me certificar se o outro estava bem. Talvez a sorte dele fosse o meu azar. Reconheci-o só quando estava próxima demais e presenteei-o com uma foto bem nítida. Aquela criatura era um jornalista, o mais insistente e insuportável que eu podia ter em minha cola. No dia seguinte, todos os jornais nas bancas tinham a minha foto estampada na primeira página. Maldita hora que fui dar uma de justiceira. “Justiceira: Garota Misteriosa salva jornalista”. Esse povo é tão criativo, mas não para me encontrar um codinome decente. Justiceira... Por favor.

Tive de sumir com o antigo figurino, o que não foi fácil, pois era tão bonito e sexy... Abandonei as máscaras, adotei um visual novo, mas mantive a minha identidade. Seria perigoso sair por aí salvando as pessoas dos criminosos, mas essa era a parte que mais me excitava. Começava, ali, um novo nível de desafio. Alguns dos antigos hábitos tive de atualizar, pois seria um tanto que impossível manter se eu fosse encarar desmascarada. Por exemplo, não podia mais encarar os bandidos diretamente, se eles podiam me identificar. Encontrei duas soluções para este impasse: eu estaria vigiando, de longe, e, qualquer coisa suspeita, contataria a polícia. Se isso não funcionasse, teria de encarar os criminosos e, sendo assim, não poderia deixá-los escapar. Ou seja, se a polícia não fosse eficiente, teria de apagar os caras, não poderia correr o risco de ser identificada.

Este dever que me impus toma, praticamente, todo o meu tempo. Não sou uma desocupada, é claro, mas o que me resta de tempo – que deveria ser de lazer – eu uso nesta atividade emocionante. Vida pessoal, para mim, não existe. É só trabalho e mais trabalho. Como advogada, já tenho vários inimigos. Não sou apenas uma advogada, sou a melhor advogada da firma. Cuido dos contratos impossíveis, dos processos exorbitantes e, sendo a melhor, tenho as minhas regalias. Pode ser uma visão egocêntrica, mas a firma não progride sem mim. Mas enfim, se não estou cuidando de processos e contratos, estou caçando os bandidos pelas ruas. Tempo é o que não me sobra. E eu que, um dia, já cogitei uma vida normal, com um namorado, que seria, posteriormente, meu marido e o estresse comum do trabalho. Bobagem. Nas minhas condições isso seria impossível. E eu não podia estar mais aliviada, porque esta é a minha vida e, fugindo ou não, esta é a minha realidade.

Apesar destes termos, não deixei de ser suscetível aos truques dos sentimentos. Acho que, por mais que a pessoa seja fria ou insensível, não há quem consiga fugir. E comigo não seria diferente. Tornar-me sempre indisponível a qualquer envolvimento passional atraiu curiosos. Especulavam de tudo e sussurravam quando eu passava. Esses boatos são sempre absurdos, mas eu nunca pensei que não existisse limite. Já me perguntaram se eu não fazia terapia e indicaram bons terapeutas, para que eu pudesse superar os abusos que sofri quando criança. Como eu disse, um absurdo. Mas são memórias, tornam-se pensamentos que se esvaem no leve vento da noite, quando volto à minha realidade. E lá estava ele, de novo. Incrível como esses jornalistas se encrencam, para eu ter que limpar a bagunça que fazem. E, dessa vez, os bandidos não tiveram sorte. Tive de ser rápida e manter-me irreconhecível. O que este maníaco não facilitava. Parecia que ele me perseguia, pois toda noite estava envolvido com esta gente e lá ia eu ter de salvá-lo.

Teve uma noite que eu cheguei um pouco atrasada para evitar que o tal jornalista fosse nocauteado e, só assim, pude observá-lo de perto. Ele tinha uma boca nem tão fina, mas nem tão grossa, era ideal – para os meus padrões. O nariz era perfeito e a voz, que eu já ouvira várias vezes depois de tanto salvá-lo, era suave e um tanto rouca. Aquela rouquidão era o charme daquele maníaco insistente. Não sei o que me aconteceu, mas esqueci de toda a discrição e cometi o meu maior erro. Levei-o para minha casa. Quando ele acordou, deitado no meu sofá ainda tonto, e me perguntou onde ele estava, eu petrifiquei. Aqueles eram os olhos azuis mais claros e mais lindos que eu já vi. Como a minha razão falhava com ele, expliquei que o encontrei, na noite anterior, em frente ao prédio e acabei acolhendo-o, para que não passasse a noite na rua. Foi a história mais ridícula que já inventei. Ele agradeceu e partiu. Só para eu ter a privacidade para me odiar.

Achei que não o encontraria mais depois daquele episódio, mas a criatura esqueceu a carteira no meu apartamento. Então ele foi me fazer uma visita, uma surpresa completamente inesperada. Ele até que, em circunstâncias normais, era agradável. E os encontros não acabavam por ali. Era um convite para um café, outro para um sorvete e continuavam. Eu só recusava os encontros noturnos, afinal, não conseguiria me duplicar para cuidar dele e dos outros cidadãos simultaneamente. As coisas iam bem para nós. Ele respeitava os meus limites, era compreensivo – até demais. Mas era o fato de tudo estar bem que me atordoava. Eu lembrava, depois dos nossos encontros, que ele era um jornalista e que não hesitaria em me revelar ao mundo. E assim que fizesse, aqueles detetives viriam atrás de mim. Eu não podia permitir um prolongamento disso tudo. Aquele seria o fim de qualquer futuro problema. Eu só precisava definir como fazer. Isso se eu retomasse a razão.

Comecei evitando os encontros, recusando os convites. Mas de nada adiantava se eu tinha de salvá-lo todas as noites. Esses jornalistas encontram problemas para o resto da vida, uma proeza notável. Mas isso já não me surpreendia mais. Continuei a minha rotina, como se nada tivesse acontecido. O que antes começou como uma sede de vingança tornara-se uma obrigação pela justiça. O meu verdadeiro objetivo não foi esquecido. As noites tornavam-se calma aos poucos, as ruas estavam seguras. E eu continuava nos telhados, espreitando, para ter uma garantia. O que eu relutava em admitir é que procurava pelo jornalista, mas ele havia sumido do meu radar. Mas, de repente, um homem surge do nada. Ele não era um justiceiro, como eu, era apenas alguém que conhecia a Garota Misteriosa – quem ele já havia revelado ao mundo – e aquela que encarava, a Justiceira, era quem ele jamais apresentaria àqueles inquietos para conhecê-la. Ele sempre soube deste meu segredo.

Dizem que vermelho é a cor da paixão. Eu ainda não concordo. Não sei o que dizem sobre o azul, mas foi essa cor que me resgatou da escuridão quando aquele homem acordou no meu sofá. Como uma fênix, ressurgi das minhas cinzas, das cinzas do meu passado para dar um novo sentido ao meu presente, um agora que crio com ele. Faço mistério quanto ao nome dele porque, pela primeira vez em doze anos, eu me escondo para proteger alguém com quem me importo, alguém que eu amo. Nada da minha rotina mudou. Talvez só o meu endereço e o fato de não estar mais sozinha quando acordo. A minha busca por vingança foi completamente substituída pela justiça. E até chegar aos meus alvos, passei por bons bocados. Admito que procurar pelos responsáveis pela morte dos meus pais tornou-se um assunto pessoal, mas quando passei a proteger as pessoas de qualquer perigo, a vingança ficou em segundo plano. Afinal, não posso ser descuidada, ainda mais quando aceitei colocar a vida de mais um em risco – o que não acontecerá. Cada detalhe tem de ser calculado, até em suas mínimas particularidades. Agora tenho que cuidar de um assunto pendente há doze anos...

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Recomeço






Eu tinha tudo. Popularidade, dinheiro, amigos, tudo o que queriam ter. A minha casa era enorme, um labirinto de aposentos. E eu ainda tinha uma empregada só para mim... Mesmo tendo tudo o que desejava, eu não me sentia totalmente realizada. Essas coisas me provocavam sensações momentâneas, era um afago ao ego. Todos esses mimos não eram para me agradar, mas para compensar a ausência dos meus pais. Não que eles fossem realmente ausentes, é que eles tinham dificuldades em cumprir com a obrigação com a qual se comprometeram por minha causa. Por isso a empregada, a casa grande, tudo o que eu tinha. Óbvio que eu guardava um leve ressentimento por isso, quando eu era criança. Todos os meus amigos e colegas se despediam dos pais, na porta da escola, com um beijo e um abraço, enquanto eu me despedia cordialmente do motorista.

A minha diversão era bancar a detetive, investigando todos os aposentos da casa. Eu acabei tornando-me muito analítica, um aspecto que irritava os meus pais. Não tendo mais o que fazer naquela enorme casa, um professor ia toda tarde lá para treinarmos o meu inglês. Talvez eu não tenha mencionado a minha fluência em alguns idiomas – e inglês é um deles. Com toda essa preparação, eu já tinha um plano. O meu sonho era tornar-me a melhor das melhores médicas, ser requisitada por todos. Claro que sempre estive ciente das implicações consequentes desta minha alternativa, mas um pouco de desafio me tirava daquela rotina exaustiva. Era por isso que eu dava o meu todo, esforçava-me nos mais árduos trabalhos e nos mais simples também. Os meus colegas sempre me olhavam desgostosos quando eu tirava as melhores notas nas avaliações, inclusive os meus amigos. Também pudera, né... eles só se preocupavam com festas, bebidas e relacionamentos – coisas que se me atraíssem, atraíam muito pouco. Eu tinha vida social, mas não posso negar que preferia o aconchego dos meus misteriosos aposentos e a presença da minha gloriosa empregada. 

Ah, Bárbara... Antes de minha empregada, ela era a minha melhor amiga. Sua mãe – a dona Jurema – trabalhou para os meus pais e, na época que minha mãe engravidou, Bárbara tinha apenas sete anos. Foi ela quem cuidara de minha infância, brincava comigo e até lia para mim. Nós criamos um vínculo tão forte que ela acabou por assumir o lugar da mãe quando completou vinte anos. Eu já disse a ela: empregada só na presença dos meus pais. Para mim, ela era a minha companheira. Se os meus pais desconfiassem que, enquanto eles estavam trabalhando ou viajando, eu ajudava a Bárbara nas tarefas, eles surtariam. Quanto ao pensamento deles, eu digo que vivem numa caixa antiquada e lacrada, porque eles se mantinham nos ideais antiguíssimos – ainda tratavam os empregados como escravos e isso me revoltava profundamente. Claro que a minha revolta era inadmissível para eles, por isso eu mantinha algumas máscaras, combinadas com todos que eu fosse envolver nas minhas histórias. 

Às vezes eu ia a algumas festas, mas não tardava a ficar. Por vezes encontrei algum garoto interessante e, naquele vaivém de conversas, acabávamos em outros encontros, até que um namoro fosse anunciado. Tudo o que acontecia eu contava para Bárbara, já que meus pais não perguntavam nada, pois já haviam dado o aviso antes mesmo de eu sair: sem drogas e não invente de chegar em casa bêbada, senão tu nem precisará entrar! Um discurso pra lá de animador, mas eu nem abusava, preferia manter-me sóbria para evitar qualquer transtorno. 

Teve este garoto, uma vez, que me conquistou por completo. Ele tinha jeito com as palavras, aventurava-se a escrever alguns poemas e contos, além de ser inteligentíssimo e lindo. Os nossos encontros eram sempre excitantes, por serem programas diferentes e desafiadores. Ora era uma ida ao cinema, seguida por uma passada na livraria – nós adorávamos cheirar os livros novos, ora era um jantar bem preparado na casa dele, com direito a uma deliciosa leitura. (Os desafios mantenho na lembrança, não é necessário revela-los). Essa nossa relação se estendeu por alguns meses, até que tive de interromper o namoro, porque os meus amados pais resolveram me mandar para o exterior, sem mais nem menos. 

Algumas das manias dele incorporei às minhas. Comecei a escrever coisas aleatórias que me surgiam à cabeça, que mais pareciam o meu diário. Agradei-me com alguns dos resultados, outros estive constantemente alterando detalhes, adicionando outros, sempre um trabalho inacabado. O meu professor de Inglês visitava-me com mais frequência, eu precisava estar preparada para a viagem. Já não aguentava mais tantas perguntas, todos criavam tantas expectativas para mim, até mesmo os meus pais – uma coisa rara de acontecer. 

Os meus amigos ficaram animados com a notícia da minha ida – não sei se era pelo fato de que não me veriam mais por um bom tempo ou porque seria algo grandioso para mim, mas não percebiam a minha falta de vontade de seguir com este plano. Até a Bárbara estava inquieta com isso. Avoada, como diria a dona Jurema, a garota não deixava de tocar no assunto da minha partida. 

- Senta um pouquinho, Bárbara. De tão distraída que tu estás, é capaz de quebrar estes pratos e terei de assistir a minha mãe utilizando um vocabulário péssimo e tendo um infarto. – eu disse. Obediente, Bárbara sentou-se em minha frente. Ela não parava, os olhos dela circulavam pela cozinha e, de repente, ela dizia que tinha de limpar isso ou guardar aquilo. Eu observava o comportamento dela, embora ela não percebesse. 

- Já sabes pra onde tu vais? – perguntou-me ela, sem querer adiar o inevitável. 

- Na verdade, não. Estão mantendo mistério quanto a isso, acho que descobrirei apenas quando tiver de pegar a passagem... Por que, tu sabes de alguma coisa? 

- Talvez eu tenha ouvido um pouco mais do que eu deveria, mas não tenho certeza se foi o que quiseram dizer... 

- Então diga, não prolongue mais a minha curiosidade! – Bárbara riu, hesitou por um instante, mas logo começou a falar. 

- O plano era de te mandar para Califórnia. Quisera eu poder ir para lá... 

- Não entendo o porquê disso agora... 

- Alice, por favor. Este será um sonho teu tornando realidade os teus desejos, guria! Lá existem ótimas faculdades e tenho certeza que te aceitarão! 

- É, mas por que decidiram, de repente, realizar os meus sonhos? Nunca se preocuparam com isso e agora querem me ver feliz? Deve de haver algo por detrás desta história... 

- Quando tu partes? 

- Semana que vem, lamentavelmente. 

- Deixes de ser lamentosa, esta viagem há de revolucionar a tua vida! Não haverá mais amigos meus para te apresentar, agora é só gente importante... 

- Como se tu não fosses importante, não é mesmo Bárbara? Tá, agora chega de conversa, temos de ajeitar as coisas por aqui para quando os meus pais (meus patrões, sussurrou Bárbara) chegarem.

Louça limpa, casa limpa e organizada. Já era hora de eu arranjar algo para relaxar. Num sobressalto, encontro-me com Ivan – aquele certo indivíduo com quem tive de terminar o namoro –, o que me surpreende. Conversamos sobre a minha viagem, expliquei-lhe o motivo do nosso rompimento – assunto sobre o qual ele fora muito compreensivo – e Ivan me conta que já encontrou outro alguém, mas que ela não se compara comigo. Inacreditável, logo ele que pensei ser diferente dos demais, era tão mais igual do que os primeiros namorados... Aquela conversa me transtornou. Óbvio que ninguém se compara a mim, já é um insulto insinuar tal coisa. Naquele instante me decidi: iria à Califórnia, me dedicaria aos estudos. O que me acontecesse seria bônus – dependendo do que fosse, talvez não –, mas aquela seria a minha chance, eu tinha de concordar com Bárbara. 

Dois dias antes da minha partida, os meus amigos foram até a minha casa. A Bárbara combinou com eles, secretamente, uma festa de despedida surpresa. Dançamos, cantamos, comemos e brindamos a minha partida, o meu novo início. Todas aquelas pessoas estavam inquietas, elas riam e falavam alto, dançavam e cantavam em minha volta. Não havia palavras que descrevessem o que eu sentia naquele instante. Surpresa, ansiedade e, mesmo antes, saudade. Esta, por fim, será uma lembrança que guardarei por todo o tempo. Os meus pais, como de costume, estavam ocupados com o trabalho, o que explica a liberdade que Bárbara teve para convidar o pessoal. Eu sentiria falta da Bárbara, das nossas conversas e risadas, das nossas aventuras por aqueles aposentos e das nossas experiências compartilhadas – que foram tantas... 

- Tu vais me escrever, né Alice? 

- Claro, como não! É uma pena tu não poder me acompanhar... Mas quem sabe um anjo te busque para ficar ao meu lado numa bela praia de Califórnia... 

- Quisera eu sonhar tão longe. Mas o meu destino está aqui e daqui não sai. Agora com a tua partida, o meu trabalho não tem propósito para os teus pais. Eu já tenho dinheiro, mais do que suficiente, para continuar com a minha vida. Vou cursar Biomedicina e arranjarei um outro trabalho. 

- Isso é uma beleza! Pois faças, que todo o apoio que tu precisares eu te dou! 

- Tu já fizeste demais para mim, Alice. Comece a tua vida, que a minha eu continuo... Mas não te esqueças de me escrever, quero me sentir como se estivesse lá contigo! 

- Sem dúvida alguma, minha amiga. Pois trates de me dar notícias também. 

- Certamente. Vá, que senão tu perdes o voo. – abracei Bárbara e segui ao embarque. Foram algumas horas no céu, mas parecera uma eternidade. O céu, naquele azul de imensidão, tornava o meu mundo infinito, bem como a saudade instantânea da minha casa. Ali era o começo. Cheguei, finalmente, no apartamento que os meus pais compraram, porque eles não me mandariam à Califórnia para vagar pelas ruas. O apartamento era enorme e lindo, a vista era indescritível. Os vizinhos eram receptivos e logo fiz novas amizades. 

Tu me pediste para te escrever de modo que te fizesse sentir aqui. Bem, cá estou procurando as palavras certas. Mil seiscentos e setenta e oito palavras pra te contar do meu ponto de vista. Mas o que passamos não se coloca em palavras, só restam nas memórias. Um dia, tu me disseste que eu escreveria algo grande e tu estavas certa! Os trabalhos do meu curso – eu consegui vaga em Stanford – são enormes, mas nada impossíveis. Um pouco de desafio, nada de rotina... Queria aproveitar os dias de sol à beira mar com a minha melhor amiga e companheira. Tu não sabes a quantidade de garotos lindos que caminham por aqui. Realmente tu me fazes falta. Enfim, não sei se te fiz sentir aqui comigo, mas espero que sim. É um novo amanhecer, um recomeço para a minha vida e devo isso a ti! Por tudo o que tu me fizeste, eu agradeço carinhosamente, pois não haveria quem o fizesse assim. A ti, minha querida amiga, brindo os meus novos dias.