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Let me out Don't tell me everything Start it out Like any other day Must have gave the wrong impression Don't you understand where I belong? Well I'm not the one (Carry me home - The Killers)

sexta-feira, 12 de abril de 2013

Memórias

“Leve-me para casa
Eu não tenho medo
As estrelas nos meus olhos
Eram luzes cintilantes
Leve-me para casa
Não me deixe desaparecer”
(The Killers – Carry me home)


Sofia procurava por entre os bilhetes uma memória esquecida. Sentia seu estômago revirar a cada nome que encontrava escrito nos papeis. As palavras, harmonicamente desenhadas, evocavam as vozes que tanto a atormentava, mas ela se sentia realizada por ter mantido aquelas lembranças – eram as melhores que podia ter e compensavam por muitas outras que não gostaria de ter. Mas lá estava, um pedaço de papel de caderno, rabiscado por letras ilegíveis, aquele que ela procurava.


“Querida Sofia...” ela não tentou concluir a leitura. Lembrava-se de cada letra, cada palavra, até de cada pontuação errônea que lhe dava nos nervos. Lembrava-se dele. Do seu sorriso maroto, do seu olhar cativante, da sua voz suave e rouca, dele. Não tão distante, teve de se despedir. Abandonar todos os risos que com ele dera, todos os abraços que dele recebera, todas as palavras que um dia já ouvira. O tempo passa, e a mudança é inevitável. Separaram-se para nunca mais se encontrar, mas o sentimento perdurou por todo o tempo. Até agora.


Em suas palavras restou o pedido: não permita que isso acabe. Mantenha a chama viva da tua alma, deixe com que as memórias se imortalizem, lembre-se sempre de mim que, assim, me lembrarei de ti. Sofia levou consigo, em sua alma vermelha de paixão, todas as lembranças, como se fossem sagradas para toda a vida. Mas, conforme o tempo passava, e a distância aumentava, sua alma tornou-se de um tom vermelho vivo para um esverdeado vibrante – a esperança era tê-lo de volta. Pobre Sofia, mal sabia ela que o retorno não aconteceria.


Perdeu suas esperanças, enegreceu sua alma. Já não sabia o propósito de mais nada, mas ainda mantinha, bem guardadas, as cartas a ela endereçadas. De início, lia e relia cada frase, procurava sentir as memórias. Sentava-se próxima a janela, perdia-se ao meio dos montes de papeis. Mas, por cada vez mais que insistia naqueles rabiscos, Sofia já não encontrava o sentido. Naquele dia mesmo, em que se decidira abandonar as lembranças que só a impediam de seguir, o sol brilhou mais forte e o céu, num tom de azul pacífico, tornou-se limpo. Era um grande passo, que ficaria para uma outra história, mas não custa dizê-lo aqui mesmo.


Sofia desprendeu-se do passado, o seu olhar brilhava ainda mais do que antes. Estava livre e sentia-se bem. Aquelas cartas não foram destruídas, mas deixadas de lado. Sorria alegremente ao ver o dia amanhecer. Sorriu ainda mais quando reencontrou o olhar que cintilava ao encontrar o dela. Os olhos castanhos e aconchegantes, o sorriso perfeito e o calor do toque fez com que Sofia se esquecesse daqueles montes de papeis que tivera separado. Mas, embora ela não percebesse, a memória se fazia, naquele outro alguém, eternizada. Aquela era a lembrança que não desvanecia.

Fênix

“Eu quero reconciliar a violência no seu coração

Eu quero reconhecer a sua beleza, não só uma máscara

Eu quero exorcizar os demônios do seu passado

Eu quero satisfazer os desejos secretos do seu coração”

Undisclosed desires - Muse

Dizem que vermelho é a cor da paixão. Eu discordo. Deparei-me com essa cor em diversas situações e em nenhuma delas havia paixão. Vi olhos vermelhos de raiva e o sangue, num tom de vermelho que eu desconhecia, de pessoas com quem me importava escorrer, levando suas vidas neste rio. Às vezes tento fugir da minha realidade, escapar desses falsos vínculos que, para mim, não significam nada.

Os meus dias são sempre os mesmos. Sigo uma rotina e tenho de sempre tomar cuidado com quem contato e, até mesmo, com quem percebe a minha presença no decorrer do dia. Sou uma fugitiva, como já disse, da minha realidade. Mas nem sempre essa sou eu. Meus pais foram mortos há doze anos, quando eu ainda era uma criança. Eu teria sido pega, se os criminosos fossem competentes e se eu não fosse silenciosa. Mas me escondi debaixo da minha cama – que clichê. Como o meu quarto estava ainda arrumado, como se ninguém estivesse ali o dia inteiro, os bastardos não se deram ao trabalho de me procurar por lá. Presenciar uma cena dessas pode mexer com o psicológico de uma criança.

Cresci procurando por vingança. Aprendi a ser rápida e silenciosa, tornei-me uma lutadora daquelas de história em quadrinhos, invencível. Toda noite eu ia num armazém abandonado para golpear alguns sacos de areia, era lá que eu voltava à minha realidade. Quando tudo isso começou, eu buscava fazer aqueles desgraçados pagarem pelo o que tive de passar, ainda mais pelos meus pais que não voltariam. Mas era a minha chance de fazer a coisa certa, de vingança e justiça. Decidi, então, praticar um pouco mais para estar pronta quando eu os encontrasse. Isso acontecia com os pequenos bandidos, alguns ladrõezinhos... Fui pegando o gosto pela coisa e não tardou para eu estar nas manchetes dos jornais. “Garota Misteriosa cuida de nossos cidadãos”, “Salvo mais uma vez pela Garota Misteriosa” e por assim ia.

Apesar de eu ser a ‘salvadora’ da cidade, nem todos concordavam que isso era bom. Aparentemente eu oferecia algum tipo de risco, segundo alguns detetives. Disso eu sei, porque eles não são nada discretos e, com certeza, não falam nada baixo. Eles estavam procurando pela Garota Misteriosa, contatando aquelas pessoas a quem prestei meus serviços e fazendo delas testemunhas para chegar até a mim. A única tática que podia funcionar. Entretanto, eles ignoraram o fato de eu não ser estúpida ao ponto de me identificar. Eu arranjei um figurino, obviamente, para não ser reconhecida. Mas os meus motivos eram diferentes. Não me mascarei para proteger as pessoas com quem me importo, aliás, todas elas estavam mortas, mas para manter o elemento surpresa quando encontrasse os meus alvos.

A minha rotina passou a ser um pouco mais difícil, eu tinha de cuidar dos cidadãos – que agora eram ‘meus’, porque passei a sentir uma obrigação quase que disfuncional de protegê-los – e tinha de me manter fora do radar daqueles detetives, que mais sabiam comer do que realmente investigar. Até que um dia eu tive a sorte de salvar um cara de uma execução. Afugentei os caras maus e fui me certificar se o outro estava bem. Talvez a sorte dele fosse o meu azar. Reconheci-o só quando estava próxima demais e presenteei-o com uma foto bem nítida. Aquela criatura era um jornalista, o mais insistente e insuportável que eu podia ter em minha cola. No dia seguinte, todos os jornais nas bancas tinham a minha foto estampada na primeira página. Maldita hora que fui dar uma de justiceira. “Justiceira: Garota Misteriosa salva jornalista”. Esse povo é tão criativo, mas não para me encontrar um codinome decente. Justiceira... Por favor.

Tive de sumir com o antigo figurino, o que não foi fácil, pois era tão bonito e sexy... Abandonei as máscaras, adotei um visual novo, mas mantive a minha identidade. Seria perigoso sair por aí salvando as pessoas dos criminosos, mas essa era a parte que mais me excitava. Começava, ali, um novo nível de desafio. Alguns dos antigos hábitos tive de atualizar, pois seria um tanto que impossível manter se eu fosse encarar desmascarada. Por exemplo, não podia mais encarar os bandidos diretamente, se eles podiam me identificar. Encontrei duas soluções para este impasse: eu estaria vigiando, de longe, e, qualquer coisa suspeita, contataria a polícia. Se isso não funcionasse, teria de encarar os criminosos e, sendo assim, não poderia deixá-los escapar. Ou seja, se a polícia não fosse eficiente, teria de apagar os caras, não poderia correr o risco de ser identificada.

Este dever que me impus toma, praticamente, todo o meu tempo. Não sou uma desocupada, é claro, mas o que me resta de tempo – que deveria ser de lazer – eu uso nesta atividade emocionante. Vida pessoal, para mim, não existe. É só trabalho e mais trabalho. Como advogada, já tenho vários inimigos. Não sou apenas uma advogada, sou a melhor advogada da firma. Cuido dos contratos impossíveis, dos processos exorbitantes e, sendo a melhor, tenho as minhas regalias. Pode ser uma visão egocêntrica, mas a firma não progride sem mim. Mas enfim, se não estou cuidando de processos e contratos, estou caçando os bandidos pelas ruas. Tempo é o que não me sobra. E eu que, um dia, já cogitei uma vida normal, com um namorado, que seria, posteriormente, meu marido e o estresse comum do trabalho. Bobagem. Nas minhas condições isso seria impossível. E eu não podia estar mais aliviada, porque esta é a minha vida e, fugindo ou não, esta é a minha realidade.

Apesar destes termos, não deixei de ser suscetível aos truques dos sentimentos. Acho que, por mais que a pessoa seja fria ou insensível, não há quem consiga fugir. E comigo não seria diferente. Tornar-me sempre indisponível a qualquer envolvimento passional atraiu curiosos. Especulavam de tudo e sussurravam quando eu passava. Esses boatos são sempre absurdos, mas eu nunca pensei que não existisse limite. Já me perguntaram se eu não fazia terapia e indicaram bons terapeutas, para que eu pudesse superar os abusos que sofri quando criança. Como eu disse, um absurdo. Mas são memórias, tornam-se pensamentos que se esvaem no leve vento da noite, quando volto à minha realidade. E lá estava ele, de novo. Incrível como esses jornalistas se encrencam, para eu ter que limpar a bagunça que fazem. E, dessa vez, os bandidos não tiveram sorte. Tive de ser rápida e manter-me irreconhecível. O que este maníaco não facilitava. Parecia que ele me perseguia, pois toda noite estava envolvido com esta gente e lá ia eu ter de salvá-lo.

Teve uma noite que eu cheguei um pouco atrasada para evitar que o tal jornalista fosse nocauteado e, só assim, pude observá-lo de perto. Ele tinha uma boca nem tão fina, mas nem tão grossa, era ideal – para os meus padrões. O nariz era perfeito e a voz, que eu já ouvira várias vezes depois de tanto salvá-lo, era suave e um tanto rouca. Aquela rouquidão era o charme daquele maníaco insistente. Não sei o que me aconteceu, mas esqueci de toda a discrição e cometi o meu maior erro. Levei-o para minha casa. Quando ele acordou, deitado no meu sofá ainda tonto, e me perguntou onde ele estava, eu petrifiquei. Aqueles eram os olhos azuis mais claros e mais lindos que eu já vi. Como a minha razão falhava com ele, expliquei que o encontrei, na noite anterior, em frente ao prédio e acabei acolhendo-o, para que não passasse a noite na rua. Foi a história mais ridícula que já inventei. Ele agradeceu e partiu. Só para eu ter a privacidade para me odiar.

Achei que não o encontraria mais depois daquele episódio, mas a criatura esqueceu a carteira no meu apartamento. Então ele foi me fazer uma visita, uma surpresa completamente inesperada. Ele até que, em circunstâncias normais, era agradável. E os encontros não acabavam por ali. Era um convite para um café, outro para um sorvete e continuavam. Eu só recusava os encontros noturnos, afinal, não conseguiria me duplicar para cuidar dele e dos outros cidadãos simultaneamente. As coisas iam bem para nós. Ele respeitava os meus limites, era compreensivo – até demais. Mas era o fato de tudo estar bem que me atordoava. Eu lembrava, depois dos nossos encontros, que ele era um jornalista e que não hesitaria em me revelar ao mundo. E assim que fizesse, aqueles detetives viriam atrás de mim. Eu não podia permitir um prolongamento disso tudo. Aquele seria o fim de qualquer futuro problema. Eu só precisava definir como fazer. Isso se eu retomasse a razão.

Comecei evitando os encontros, recusando os convites. Mas de nada adiantava se eu tinha de salvá-lo todas as noites. Esses jornalistas encontram problemas para o resto da vida, uma proeza notável. Mas isso já não me surpreendia mais. Continuei a minha rotina, como se nada tivesse acontecido. O que antes começou como uma sede de vingança tornara-se uma obrigação pela justiça. O meu verdadeiro objetivo não foi esquecido. As noites tornavam-se calma aos poucos, as ruas estavam seguras. E eu continuava nos telhados, espreitando, para ter uma garantia. O que eu relutava em admitir é que procurava pelo jornalista, mas ele havia sumido do meu radar. Mas, de repente, um homem surge do nada. Ele não era um justiceiro, como eu, era apenas alguém que conhecia a Garota Misteriosa – quem ele já havia revelado ao mundo – e aquela que encarava, a Justiceira, era quem ele jamais apresentaria àqueles inquietos para conhecê-la. Ele sempre soube deste meu segredo.

Dizem que vermelho é a cor da paixão. Eu ainda não concordo. Não sei o que dizem sobre o azul, mas foi essa cor que me resgatou da escuridão quando aquele homem acordou no meu sofá. Como uma fênix, ressurgi das minhas cinzas, das cinzas do meu passado para dar um novo sentido ao meu presente, um agora que crio com ele. Faço mistério quanto ao nome dele porque, pela primeira vez em doze anos, eu me escondo para proteger alguém com quem me importo, alguém que eu amo. Nada da minha rotina mudou. Talvez só o meu endereço e o fato de não estar mais sozinha quando acordo. A minha busca por vingança foi completamente substituída pela justiça. E até chegar aos meus alvos, passei por bons bocados. Admito que procurar pelos responsáveis pela morte dos meus pais tornou-se um assunto pessoal, mas quando passei a proteger as pessoas de qualquer perigo, a vingança ficou em segundo plano. Afinal, não posso ser descuidada, ainda mais quando aceitei colocar a vida de mais um em risco – o que não acontecerá. Cada detalhe tem de ser calculado, até em suas mínimas particularidades. Agora tenho que cuidar de um assunto pendente há doze anos...

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Recomeço






Eu tinha tudo. Popularidade, dinheiro, amigos, tudo o que queriam ter. A minha casa era enorme, um labirinto de aposentos. E eu ainda tinha uma empregada só para mim... Mesmo tendo tudo o que desejava, eu não me sentia totalmente realizada. Essas coisas me provocavam sensações momentâneas, era um afago ao ego. Todos esses mimos não eram para me agradar, mas para compensar a ausência dos meus pais. Não que eles fossem realmente ausentes, é que eles tinham dificuldades em cumprir com a obrigação com a qual se comprometeram por minha causa. Por isso a empregada, a casa grande, tudo o que eu tinha. Óbvio que eu guardava um leve ressentimento por isso, quando eu era criança. Todos os meus amigos e colegas se despediam dos pais, na porta da escola, com um beijo e um abraço, enquanto eu me despedia cordialmente do motorista.

A minha diversão era bancar a detetive, investigando todos os aposentos da casa. Eu acabei tornando-me muito analítica, um aspecto que irritava os meus pais. Não tendo mais o que fazer naquela enorme casa, um professor ia toda tarde lá para treinarmos o meu inglês. Talvez eu não tenha mencionado a minha fluência em alguns idiomas – e inglês é um deles. Com toda essa preparação, eu já tinha um plano. O meu sonho era tornar-me a melhor das melhores médicas, ser requisitada por todos. Claro que sempre estive ciente das implicações consequentes desta minha alternativa, mas um pouco de desafio me tirava daquela rotina exaustiva. Era por isso que eu dava o meu todo, esforçava-me nos mais árduos trabalhos e nos mais simples também. Os meus colegas sempre me olhavam desgostosos quando eu tirava as melhores notas nas avaliações, inclusive os meus amigos. Também pudera, né... eles só se preocupavam com festas, bebidas e relacionamentos – coisas que se me atraíssem, atraíam muito pouco. Eu tinha vida social, mas não posso negar que preferia o aconchego dos meus misteriosos aposentos e a presença da minha gloriosa empregada. 

Ah, Bárbara... Antes de minha empregada, ela era a minha melhor amiga. Sua mãe – a dona Jurema – trabalhou para os meus pais e, na época que minha mãe engravidou, Bárbara tinha apenas sete anos. Foi ela quem cuidara de minha infância, brincava comigo e até lia para mim. Nós criamos um vínculo tão forte que ela acabou por assumir o lugar da mãe quando completou vinte anos. Eu já disse a ela: empregada só na presença dos meus pais. Para mim, ela era a minha companheira. Se os meus pais desconfiassem que, enquanto eles estavam trabalhando ou viajando, eu ajudava a Bárbara nas tarefas, eles surtariam. Quanto ao pensamento deles, eu digo que vivem numa caixa antiquada e lacrada, porque eles se mantinham nos ideais antiguíssimos – ainda tratavam os empregados como escravos e isso me revoltava profundamente. Claro que a minha revolta era inadmissível para eles, por isso eu mantinha algumas máscaras, combinadas com todos que eu fosse envolver nas minhas histórias. 

Às vezes eu ia a algumas festas, mas não tardava a ficar. Por vezes encontrei algum garoto interessante e, naquele vaivém de conversas, acabávamos em outros encontros, até que um namoro fosse anunciado. Tudo o que acontecia eu contava para Bárbara, já que meus pais não perguntavam nada, pois já haviam dado o aviso antes mesmo de eu sair: sem drogas e não invente de chegar em casa bêbada, senão tu nem precisará entrar! Um discurso pra lá de animador, mas eu nem abusava, preferia manter-me sóbria para evitar qualquer transtorno. 

Teve este garoto, uma vez, que me conquistou por completo. Ele tinha jeito com as palavras, aventurava-se a escrever alguns poemas e contos, além de ser inteligentíssimo e lindo. Os nossos encontros eram sempre excitantes, por serem programas diferentes e desafiadores. Ora era uma ida ao cinema, seguida por uma passada na livraria – nós adorávamos cheirar os livros novos, ora era um jantar bem preparado na casa dele, com direito a uma deliciosa leitura. (Os desafios mantenho na lembrança, não é necessário revela-los). Essa nossa relação se estendeu por alguns meses, até que tive de interromper o namoro, porque os meus amados pais resolveram me mandar para o exterior, sem mais nem menos. 

Algumas das manias dele incorporei às minhas. Comecei a escrever coisas aleatórias que me surgiam à cabeça, que mais pareciam o meu diário. Agradei-me com alguns dos resultados, outros estive constantemente alterando detalhes, adicionando outros, sempre um trabalho inacabado. O meu professor de Inglês visitava-me com mais frequência, eu precisava estar preparada para a viagem. Já não aguentava mais tantas perguntas, todos criavam tantas expectativas para mim, até mesmo os meus pais – uma coisa rara de acontecer. 

Os meus amigos ficaram animados com a notícia da minha ida – não sei se era pelo fato de que não me veriam mais por um bom tempo ou porque seria algo grandioso para mim, mas não percebiam a minha falta de vontade de seguir com este plano. Até a Bárbara estava inquieta com isso. Avoada, como diria a dona Jurema, a garota não deixava de tocar no assunto da minha partida. 

- Senta um pouquinho, Bárbara. De tão distraída que tu estás, é capaz de quebrar estes pratos e terei de assistir a minha mãe utilizando um vocabulário péssimo e tendo um infarto. – eu disse. Obediente, Bárbara sentou-se em minha frente. Ela não parava, os olhos dela circulavam pela cozinha e, de repente, ela dizia que tinha de limpar isso ou guardar aquilo. Eu observava o comportamento dela, embora ela não percebesse. 

- Já sabes pra onde tu vais? – perguntou-me ela, sem querer adiar o inevitável. 

- Na verdade, não. Estão mantendo mistério quanto a isso, acho que descobrirei apenas quando tiver de pegar a passagem... Por que, tu sabes de alguma coisa? 

- Talvez eu tenha ouvido um pouco mais do que eu deveria, mas não tenho certeza se foi o que quiseram dizer... 

- Então diga, não prolongue mais a minha curiosidade! – Bárbara riu, hesitou por um instante, mas logo começou a falar. 

- O plano era de te mandar para Califórnia. Quisera eu poder ir para lá... 

- Não entendo o porquê disso agora... 

- Alice, por favor. Este será um sonho teu tornando realidade os teus desejos, guria! Lá existem ótimas faculdades e tenho certeza que te aceitarão! 

- É, mas por que decidiram, de repente, realizar os meus sonhos? Nunca se preocuparam com isso e agora querem me ver feliz? Deve de haver algo por detrás desta história... 

- Quando tu partes? 

- Semana que vem, lamentavelmente. 

- Deixes de ser lamentosa, esta viagem há de revolucionar a tua vida! Não haverá mais amigos meus para te apresentar, agora é só gente importante... 

- Como se tu não fosses importante, não é mesmo Bárbara? Tá, agora chega de conversa, temos de ajeitar as coisas por aqui para quando os meus pais (meus patrões, sussurrou Bárbara) chegarem.

Louça limpa, casa limpa e organizada. Já era hora de eu arranjar algo para relaxar. Num sobressalto, encontro-me com Ivan – aquele certo indivíduo com quem tive de terminar o namoro –, o que me surpreende. Conversamos sobre a minha viagem, expliquei-lhe o motivo do nosso rompimento – assunto sobre o qual ele fora muito compreensivo – e Ivan me conta que já encontrou outro alguém, mas que ela não se compara comigo. Inacreditável, logo ele que pensei ser diferente dos demais, era tão mais igual do que os primeiros namorados... Aquela conversa me transtornou. Óbvio que ninguém se compara a mim, já é um insulto insinuar tal coisa. Naquele instante me decidi: iria à Califórnia, me dedicaria aos estudos. O que me acontecesse seria bônus – dependendo do que fosse, talvez não –, mas aquela seria a minha chance, eu tinha de concordar com Bárbara. 

Dois dias antes da minha partida, os meus amigos foram até a minha casa. A Bárbara combinou com eles, secretamente, uma festa de despedida surpresa. Dançamos, cantamos, comemos e brindamos a minha partida, o meu novo início. Todas aquelas pessoas estavam inquietas, elas riam e falavam alto, dançavam e cantavam em minha volta. Não havia palavras que descrevessem o que eu sentia naquele instante. Surpresa, ansiedade e, mesmo antes, saudade. Esta, por fim, será uma lembrança que guardarei por todo o tempo. Os meus pais, como de costume, estavam ocupados com o trabalho, o que explica a liberdade que Bárbara teve para convidar o pessoal. Eu sentiria falta da Bárbara, das nossas conversas e risadas, das nossas aventuras por aqueles aposentos e das nossas experiências compartilhadas – que foram tantas... 

- Tu vais me escrever, né Alice? 

- Claro, como não! É uma pena tu não poder me acompanhar... Mas quem sabe um anjo te busque para ficar ao meu lado numa bela praia de Califórnia... 

- Quisera eu sonhar tão longe. Mas o meu destino está aqui e daqui não sai. Agora com a tua partida, o meu trabalho não tem propósito para os teus pais. Eu já tenho dinheiro, mais do que suficiente, para continuar com a minha vida. Vou cursar Biomedicina e arranjarei um outro trabalho. 

- Isso é uma beleza! Pois faças, que todo o apoio que tu precisares eu te dou! 

- Tu já fizeste demais para mim, Alice. Comece a tua vida, que a minha eu continuo... Mas não te esqueças de me escrever, quero me sentir como se estivesse lá contigo! 

- Sem dúvida alguma, minha amiga. Pois trates de me dar notícias também. 

- Certamente. Vá, que senão tu perdes o voo. – abracei Bárbara e segui ao embarque. Foram algumas horas no céu, mas parecera uma eternidade. O céu, naquele azul de imensidão, tornava o meu mundo infinito, bem como a saudade instantânea da minha casa. Ali era o começo. Cheguei, finalmente, no apartamento que os meus pais compraram, porque eles não me mandariam à Califórnia para vagar pelas ruas. O apartamento era enorme e lindo, a vista era indescritível. Os vizinhos eram receptivos e logo fiz novas amizades. 

Tu me pediste para te escrever de modo que te fizesse sentir aqui. Bem, cá estou procurando as palavras certas. Mil seiscentos e setenta e oito palavras pra te contar do meu ponto de vista. Mas o que passamos não se coloca em palavras, só restam nas memórias. Um dia, tu me disseste que eu escreveria algo grande e tu estavas certa! Os trabalhos do meu curso – eu consegui vaga em Stanford – são enormes, mas nada impossíveis. Um pouco de desafio, nada de rotina... Queria aproveitar os dias de sol à beira mar com a minha melhor amiga e companheira. Tu não sabes a quantidade de garotos lindos que caminham por aqui. Realmente tu me fazes falta. Enfim, não sei se te fiz sentir aqui comigo, mas espero que sim. É um novo amanhecer, um recomeço para a minha vida e devo isso a ti! Por tudo o que tu me fizeste, eu agradeço carinhosamente, pois não haveria quem o fizesse assim. A ti, minha querida amiga, brindo os meus novos dias.

sábado, 1 de dezembro de 2012

Carta

Naquelas cartas estavam os mais íntimos sentimentos. Em suas conversas contava-lhe os mais desconhecidos segredos. Isso em tempos que se foram, mas agora a busca é pela redenção. Um dia dissera que o amor era verdadeiro, sentimento que adormece em seu peito e é desperto por seu sorriso. Não mentira quando lhe dizia todas aquelas coisas. E preferia não tê-lo feito, pois assim não colocaria em dúvida a veracidade de suas palavras. Todo o questionamento provocava um sentimento de angústia, queria gritar que nada havia mudado, mas dessa vez preferira calar-se. Embora tentasse se afastar, tinha maiores motivos para se importar cada vez mais. Sentia que provocara tudo isso como punição e, para aliviar as tais dores, criara mundos em que fosse possível conviver com a culpa. Mas, além de tudo, sentia o que um dia os manteve unidos e isso sentia sempre. “Foste tu quem ouvira minhas histórias e a ti pedia conselhos. Lembro-me de nossas tardes, ah, nossas tardes! Aturava-me sem comentários, conversávamos como se o dia não tivesse fim. Por que eu tinha de jogar fora? Digo ser genial, mas por dizer, mesmo. Meus atos contradizem minhas palavras, eu sei, mas minhas palavras carregam a verdade incontestável do meu ser. Talvez um dia nos encontremos de novo, talvez aquelas palavras voltem a te significar algo, que para mim não deixaram de ecoar. Até lá continuo sendo a lembrança da tua ilusão. E apenas isso. Ignore minhas palavras, se assim preferir, esqueça-as, se te for melhor, mas não ignore a tua importância para mim. Então o que tu decidir eu aceitarei sem relutar. Mas talvez, se permitires, eu encontre um caminho que me traga de volta à nossa antiga estrada, que me traga de volta a ti. A decisão final deixa de ser minha e passa a ser tua”. Com uma lágrima descendo-lhe pelo rosto, pelas lembranças desencadeadas, fecha a folha de papel numa carta que talvez nem entregue.

Nome

Há tempos não dizia o nome dela, mas naquele dia fora diferente. Viu os lábios curvados num sorriso que muito antes conhecera, viu o brilho nos olhos que um dia não desviara dos seus. Sentiu saudade, alivio, sentiu tudo naquele instante. Era a quem, no início, fora apresentado. Os cabelos caíam por sobre o ombro, a mão apoiada na cintura, um corpo que secretamente desejava. Desejara, pois algo entre os dois mudou tão drasticamente que a distância dominou, esvaecendo o sorriso, o brilho inocentemente malicioso.

Aproximaram-se, aos poucos, receosos. Mas logo se viram como antes eram, grandes amigos, companheiros. O céu azul, a cor vibrante das flores e o canto dos pássaros faziam o cenário para os dois. Conversaram sobre tudo, sobre o Sol, a Terra, filmes e músicas. Enquanto ela ria, ele a fitava, maravilhado com a harmonia que testemunhava acompanhado. Entre as risadas, das mais tímidas às mais gargalhadas, ela o deitou sobre suas pernas, fazendo-lhe um tipo de cafuné em seu cabelo que mais parecia, como dizia ela, uma “bagunça com estilo”. Assim ficam por um tempo, olhando-se e rindo-se, enquanto o Sol se punha no horizonte. Não devia tê-la deixado partir, não depois do que passaram juntos e não antes do que tinham para passar. Ela, por sua vez, não devia ter se deixado levar. Mas independente disso, estavam ali, por uma força de um bem maior que não os deixaria desistir.

Falou seu nome outra vez e falaria por tantas vezes que o fizessem sorrir. Um novo dia amanheceria, e um novo após esse, mas não seria mais como era, não. Os novos dias amanheceriam para fazê-los sorrir e uni-los outra vez. Já haviam deixado suas marcas e seria difícil apagá-las. Mesmo estando longe, ele seria dela e ela seria dele. Até com tantos encontros e desencontros, o sorriso suave e brilho levemente malicioso seriam dele, e a ela restava-o como um todo.

sexta-feira, 27 de julho de 2012

Vozes

As vozes o enlouqueciam, não o deixavam dormir. “Esqueça”, dizia a Razão. “Não desista, ela é uma boa moça. E gosta de ti.” dizia a Emoção. “Não se rebaixe procurando toda hora por ela, tenha um pouco de amor próprio!” resmungava o Orgulho. O que fazer quando se tem tantos dando palpites? Como saber qual seguir? Como ignorar o resto? Haveria um equilíbrio? Porque ele procurava incessantemente por um.

As noites mal dormidas resultavam num mau humor matinal. Não sabia lidar com ninguém nessas circunstâncias, era grosseiro com todos. Principalmente com ela, o que partia seu coração. Não queria magoá-la, mas não conseguia trabalhar com seu humor alterado. E vi em seu olhar, no sussurro de suas palavras o que provocava. Magoava-a sem intenção, e ela recuava propositalmente.

Um dia tentou mudar. E foi assim que percebeu que Alana se distanciava. Não só dele, mas de quem a cercava. Ela estava tão solitária, sentada num canto, com o olhar distante e ele não teve a coragem de se aproximar. Então os olhares se cruzaram, ela sorriu-lhe um convite, ele timidamente recusou. De todas as coisas que pudera ter feito, por que recusar-lhe um convite? Quando tanto queria se aproximar, quando queria voltar…

Procurou-a noutro instante. Concentrada num texto, mal lhe deu atenção. Mas suas palavras ríspidas, diretas, confirmaram seus receios. Era o próprio motivo de seu distanciamento. E ela o fazia com tanta classe, tão bem que criava uma barreira intransponível. “Posso falar contigo?” Alana olhou-o cética, admirada, contrariada. “Claro que sim. Diga-me o que te aflige.” “Eu sei que não tenho sido um bom…” Não sabia como rotular-se, afinal eram um pouco mais do que amigos, um pouco mais íntimos. “Amigo.” Completou Alana. “Bom, se é isso que eu sou…” “É um amigo quando não estamos juntos. Enfim, se veio dar explicações, poupe saliva, pois te entendo e não te obrigo a me dar satisfações. Agora, se me dá licença, vou continuar o que estava fazendo, preciso acabar para já!” E assim Alana encerrou a conversa.

As vozes insistiam mais e mais, o Orgulho insistentemente gritava para ser ouvido. O que acontecera não se pode explicar. Antes ela era tão carinhosa, mas agora suas palavras tornaram-se afiadas. A ideia de perdê-la por não lhe dar atenção era insuportável. Nunca gostara tanto de alguém como gosta dela. Decidiria o que fazer. O mais rápido possível, pois aos poucos ia perdendo seu lugar na vida dela, à medida que ela encontrava alguém para substituir. “Alana!” Ela fez um sinal para que esperasse. “Sim, Miguel. Esse é o meu nome, cuide para não gastá-lo, senão terás que me comprar um novo.” Ela disse, sorridente. Por trás do sorriso, pode-se ver a mágoa que guardava. “Compraria o mesmo, gosto tanto desse nome.” Sorriu-lhe em resposta. “Precisamos conversar.” “Podemos fazê-lo aqui.” Ela não parecia curiosa, embora forçasse a expressão de interessada. “Desculpe, estou um tanto ocupada. Encontramo-nos em algum outro lugar, pode ser? Mais tarde.” Dito isso, ela voltou sua atenção ao trabalho inacabado.

Sentiu que não a tinha mais. A Razão adotara o discurso “Avisei”, o Orgulho reclamava sobre a falta de amor próprio. Miguel já estava cheio daquela gritaria. Não queria mais escutar, não queria mais os palpites, não queria mais nada, somente tê-la. Para isso, teria de fazer valer a pena. Marcou um jantar em sua casa, uma sessão de filmes de suspense – Alana adorava pensar e concluir junto aos atores do filme – tentaria reconquistá-la. “Então, eu andei pensando e…” “Não, esse meu distanciamento não tem nada a ver com a nossa situação. Ainda continuo gostando de ti, mais do que deveria, até. Mas acho que alguns assuntos meus devem ser discutidos somente com o meu Eu, sabe. Esses espaços que tu me dás são ótimos, agradeço a ti pela compreensão. Mas não te preocupes, nada mudou!” As palavras dela lhe foram reconfortantes, e não tinha mais dúvida. Sempre a tivera, e continuaria a tê-la. O sorriso que ela lhe abriu extinguiu todas as desconfianças que teve, todos os problemas que o estressavam. Acalmou-o. E ali teve certeza: amava-a, e lutaria por ela. As vozes calaram-se, e a Emoção, vitoriosa, suspirou em paz.

sexta-feira, 6 de julho de 2012

Quando a história acaba de começar

“Diga-me o que te aflige.” dizia ela. “Pelos céus, não há nada, guria! Deixe-me quieta no meu canto!” As duas discutiam, indignadas. “Não é para isso que as amigas servem?” perguntava Eliza. “Não, amigas servem para consolar e não para atormentar!” grunhia, em resposta, Lara. “E o que eu estou tentando fazer?” “Estás tentando me irritar ainda mais. Não percebe? Deixar-me quietinha aqui é o melhor consolo que tu tens a me oferecer!” Eliza, ofendida com as palavras secas que lhe foram cuspidas, afastou-se. “Veja bem o que dizes. Não te arrependa depois.” Lara viu-a sair, lenta e decididamente, pela porta. Suspirou e atirou-se na cama.

Ligou o rádio, colocou sua lista de música favorita, fechou os olhos e tentou dormir. Não conseguiu dormir, estava agitada demais, sua cabeça latejava, o coração palpitava. Fechava os olhos novamente, mas logo tornava a abri-los. Tantas coisas embaralhadas em sua cabeça… Além do cabelo, é claro. Os pensamentos invadiam o seu espaço num turbilhão lançado a jato. A semana começara tão bem, por que acabou daquele jeito? O que estaria ela fazendo? O caminho não deveria ser esse. Mas agora não poderia mais voltar ou olhar para trás. Era apenas uma mudança. Não morreria, mas não significava que às vezes não teria vontade de desistir.

‘Se te faz bem, por que não persistir?’ esse era o seu lema. O único problema eram as pequenas confusões que aconteciam dentro de si mesma. Os conflitos, as pressões, o desespero que agora tem de superar. Seria difícil? Provavelmente. Desistiria? Agora não. Chegou tão longe, não podia parar agora. Afinal, era uma admiradora de desafios. Ela transpôs todo e qualquer obstáculo até agora. Nesse ritmo continuaria. ‘O que é conquistado tão facilmente não me tem valor, é praticamente dado. As minhas batalhas são importantes, as minhas conquistas têm muito mais valor. ’ pensava Lara. Persistiria, afinal era uma batalha que não poderia deixar de lutar.

“O que tu faria se eu te dissesse pra me esquecer?” perguntou Gabriel. Lara, num sobressalto, olhou-o analisando a essência da pergunta. “Simplesmente te esqueceria.” “Não ficaria abalada, triste, magoada, algo do gênero?” perguntou ele. “Isso tu nunca saberias…” Gabriel desviou o olhar, evitando o de Lara. “Por que essa pergunta repentina?” perguntou Lara. “Só não quero te perder.” “Lógico…” sussurrou ela, numa ironia deleitosa. O que Gabriel não sabia era que Lara ficaria devastada, desesperada, mas ela não deixaria ninguém saber. Guardaria tudo, mesmo que não fosse o melhor a se fazer. Devastada, mas ainda continuaria seu caminho.

Lara acordou-se do sono, não percebeu que adormecera. Sua cabeça ainda latejava, mas o desconforto era menos intenso. Vestiu-se e saiu. Não pensava em nada, só em parecer que estava bem, para não atrair curiosos na reunião. Encontrou, inevitavelmente, o Gabriel que compareceria na reunião também. Agora já não se falavam mais. O que aconteceu já se pode imaginar. Forçando um sorriso amigável, os dois cumprimentaram-se e entraram no recinto. Ambos evitavam trocar olhares, mas Gabriel observou que Lara parecia estressada, deprimida. Lara, por sua vez, notou que Gabriel estava menos falante. Já não se conheciam mais. E por um instante ela viu de relance um sorriso tímido. Por um instante voltou ao passado. Foi nesse instante que também sorriu. Ainda foi tudo o que ela não esqueceu. Tudo o que eles não esqueceram.

sábado, 23 de junho de 2012

Embora distante, o atalho levará a novos limites

Olhou para os lados. Sentia fome, sentia frio, sentia, mas tão somente isso. Estava sozinha, estava numa crise. Fizera a escolha certa? De um lado, sabia que não. Ainda pensava nele, desejava-o para si. De outro, sabia que sim. Não se condenaria a alguém que brincava para sentir-se bem, fizera uma troca justa. As vozes em sua cabeça não a deixavam dormir. Se voltasse atrás, conseguiria descansar? Deitou-se atordoada e custou a sonhar.

Sonhar? Já não sonhava mais. Suas lágrimas, já secas, se empoeiravam rolando a sua face. Lamentava cada vez mais. Alguém a tiraria do limbo em que se afogava? Claro que sim. Mas, por este, queria mesmo ser resgatada? Não queria mais pensar nisso, não precisava mais. A solução era arrumar algo para fazer, ocupar-se, distrair-se. Contar as estrelas se fosse preciso. Levar a eternidade, acabar com essa maldita ansiedade!

Determinada a esquecer, resolveu agir. Olhou a sua volta: as papeis jogados sobre a escrivaninha, pratos sujos na pia, migalhas sobre a mesa, móveis empoeirados, chão sujo. Era uma bagunça total. Pegou suas luvas, a vassoura e os produtos de limpeza. Seria um trabalho árduo. Preferiu começar pela louça. Lavou prato por prato, calmamente. Não pensava em mais nada além da sujeirinha que não tirara completamente, ou do prato mal enxugado.

Em seguida, organizou sua escrivaninha. Os papeis inúteis jogou fora. Por entre os que ficaram, encontrou um pequeno bilhete: ‘como posso te convencer? O que sinto é verdadeiro. ’ Paralisou por um instante. Memórias voltam repentinamente. Sente seu cheiro, o seu toque. Estremece e pensamentos tornam-se verbalizados. Lamentável, sussurra. Tira o pó, coloca em tudo em ordem. Está na hora de dar um passo a frente.

Parte para o chão. Varre cuidadosamente, cantarolando para se esquecer. A sala fica impecável. O próximo passo foi o chão da cozinha. O chão era de lajotas claras, e quando sujo não se enxergava nada além da espessa sujeira. Ajoelhou-se e começou a esfregar. Por entre as pausas, acabava por pensar. Pensava nele, na falta que fazia. Pensava também no outro, no sorriso que para ela ele abria. O que fazer era difícil de decidir. Queria tê-lo de volta, mas para isso acabaria magoando o outro. Não queria vê-lo sofrer.

Além disso, nem tinha certeza se seria aceita de volta. Estava diante de uma bifurcação, com destinos incertos. Já conseguia enxergar por detrás da sujeira. Olhou para os lados, tudo limpo, tudo tão mais claro, tudo mais leve. De repente, teve a solução de que precisava. Sem hesitar foi ao quarto, separou o necessário por algum tempo. Fechou toda a casa. Ao fechar a porta, olha para os lados, sentindo-se estranha. Ao sair em definitivo, olha para trás e suspira profundamente. Estava fazendo um atalho para, talvez, chegar a algum dos destinos. Ou, então, para criar o seu próprio. Mas isso o tempo determina.

domingo, 10 de junho de 2012

A fuga para um sonho, o final de mais um de seus contos

Seus dedos enrijecidos pairavam sobre o teclado. Não sabia o que escrever, sobre o que escrever. Suas dúvidas o cercavam, já não se tinha certeza de mais nada. O sol não o esquentava, o silêncio o inquietava, queria não querer. Tantos dilemas, tantas perguntas, nenhuma resposta, nenhuma luz para guiá-lo. Seus papeis permaneciam jogados pela mesa, assim todo o resto se mostrava numa organização caótica. Não tinha namorada, não precisava de uma, embora muitas o desejassem. Sua cabeça latejava, a luz irritava seus olhos. Queria gritar, mas silenciar-se no volume de suas palavras. O que ele iria levar no final da sua estrada, quando tudo se acabasse? Do que iria se lembrar? O que valeria a pena no final? Realmente se lembraria de algo? Não tinha com quem conversar, se afastou de seus melhores amigos. A única pessoa que o ouviria não estava em condições, tinha seus próprios problemas para resolver. Às vezes, ele mesmo se pergunta como pode chegar a tal ponto. Por que não o impediram antes? Para essa pergunta ele tem a resposta: não podia ser impedido, se tivesse algo a aprender teria de ser feito por si mesmo. Não saberia se levantar se outrora não tivesse caído. Há algumas coisas que se devem ser vividas, e é impossível impedi-las. E lá estava ele, sozinho. No entanto, havia alguém que nunca o abandonara. Ironia era estar sozinho estando acompanhado. Lembrava-se dela nitidamente. Sentia seu cheiro, sentia seu toque quente sobre suas mãos enregeladas. Via o seu olhar meigo, seu sorriso mordaz. Tinha-a em sua frente. Passou os dedos por entre as madeixas, sentindo a maciez de seus cachos em meio ao cabelo liso. Olhou-a nos olhos, afogando-se nas profundezas de um olhar magnético puramente verde. Havia algo de diferente, podia ver e sentir. Seu olhar era frio, seu toque, que outrora o esquentava, agora gelava seus dedos suavemente. Seu cheiro era diferente. O perfume de chocolate e frutas vermelhas não se sentia mais do pescoço dela. Por entre seus dedos havia um toco de cigarro. Dissera a ela que a essência se perdia misturada ao do tabaco. Ela lhe fora indiferente. Dissera-lhe palavras que preferiu esquecer, agiu como se tivesse sido abduzida, afinal aquela criatura não era quem ele conhecia como tantos contos que escrevera. Magoado, afastou-se. Esqueceu-se de tudo e todos à sua volta. O mundo girava, agora, só para si mesmo e para mais ninguém. Criou uma barreira impenetrável. Esqueceu-se até de quem era. Seus contos já não faziam mais sentido. Quem era ele? Ele poderia ser qualquer um. Ora um herói, ora o vilão. Quem ele realmente era? Era um tolo, não, fora um tolo. Agora ressurgia do chão, caído, mas tão mais forte. Seus olhos no espelho refletiam um oceano azul, calmo, mas imprevisível. Agora este era ele. Então, que ele iria levar no final da sua estrada, quando tudo se acabasse? Todas as oportunidades que um dia perdera. Do que iria se lembrar? De todas as ironias a ele dirigidas, de todas as demonstrações de carinho e desprezo. De tudo pelo que passara. O que valeria a pena no final? O arrependimento, a raiva, as alegrias e as realizações. Realmente se lembraria de algo? Nunca se esqueceria. Não se esqueceria de todas as transformações, de cada olhar, de cada toque. De tudo que um dia escrevera. Afinal, agora sabia quem ele era e não se importava se tudo se acabasse ali. Seria seu final mais perfeito, o fim de mais um de seus contos.

quarta-feira, 6 de junho de 2012

A dúvida que o silêncio cala

Sua voz saía suave e seu sorriso era agradável. Não reconhecia mais os olhos inflamados de raiva que vira da última vez. Voltara a ser ela. Mesmo que por um instante, ele a reconhecia. Fora bem tratado, portanto, assim retribuía. Queria tocar o seu braço, como antes fazia, mas receava um desentendimento. Apenas a observou partir. Até mesmo sem a encarar, sentia a calma que dela emanava, sempre com o seu costumeiro ar de superioridade. Não a via assim desde seu reencontro. O que aconteceu para estarem tão distantes? E por que se sentiram tão conectados naquele instante? Aproximaram-se sem relutância. Ela sentia falta, mas não demonstrava. Ele era, por vezes, grosseiro. Não sabia disfarçar, mas não se renderia, seu orgulho era muito superior a isso. Ele desejava saber o que se passava, o que ela sentia e pensava, mas era impossível. Pensava nela a cada ironia, a cada olhar que lhe era dirigido. Já começava a atrapalhar. Talvez por esse motivo, talvez não, seu humor amanhecia já amargo. Suas palavras chegavam afiadas. E ela só piorava a situação. “Quem desdenha quer comprar…” dissera uma vez a ela. “Imagina então, quero muito te comprar!” esvaindo em gargalhadas, a fala ecoa. Ela dizia querendo dizer e ele sabia da verdadeira intenção. Ficaria feliz se assim fosse. Não diria o mesmo em atuais circunstâncias. Já não permite tanta aproximação, mantém-na longe. E ela, com muito grado, faz. Quando seus olhares se encontram, ela curva seus lábios, imperceptivelmente, num sorriso debochado em resposta a seu olhar indiferente. Era como se seus sorrisos, suas ironias, e até mesmo suas decepções, dissessem: ‘eu sei que te fiz bem, pelo menos um dia. Importei-me contigo, estive ao teu lado. E como o ditado diz: nada que é bom dura para sempre. Errei ao acabar dessa maneira. Não me preocupo de continuar nesta condição. Só não me olhe como se nunca tivesse sorrido para mim, ou por minha causa!’ Enfim, seus olhares diziam tudo que suas palavras não verbalizavam. E ainda continuavam misteriosos. Intransponíveis. Mas agora, o calor vinha do seu olhar travesso e provocante, do sorriso radiante, uma combinação que o arrepiava por inteiro. Ela, naquele instante, era a que conhecera, e não a que se tornara depois. Ela era quem o fazia sorrir. E ela o fez sorrir quando partiu.